GALÓPOLIS: A COMUNIDADE E A GESTÃO DO PATRIMÔNIO INDUSTRIAL
CONTEXTO HISTÓRICO: O SURGIMENTO DA DINÂMICA INDUSTRIAL
A história de Galópolis foi escrita pela primeira vez ao longo das primeiras produções historiográficas referentes à Caxias do Sul, cidade onde se situa. Esta produção foi bastante tardia, sendo escrita pela primeira vez, no Cinquentenário da Imigração Italiana no Rio Grande do Sul, comemorado no ano de 1925, e consistia em álbuns com função estritamente oficial de divulgação. Em 1950, vinte e cinco anos mais tarde, é organizado outro álbum, que até hoje é fonte de consulta para historiadores interessados na cultura regional. Em ambas produções, prezou-se pelo enaltecimento da figura do “europeu desbravador”, que chega em “terras selvagens” e as colonizam a partir do zero – tendência de valorização humanista latina.
Essa mesma postura positivista dentro da historiografia irá orientar as produções seguintes feitas por João Spadari Adami, que escreveu densos volumes publicados ao longo das décadas de 1960 e 1970, os quais descreviam (sem uma análise aprofundada) o surgimento e desenvolvimento do RCI. Estas pesquisas foram financiadas por Júlio João Eberle, industrial da metalurgia caxiense considerado um expoente da imigração para a região, o que justifica a tendência empregada nestas obras. Após a morte do historiador-barbeiro, seus arquivos – em sua grande maioria, documentos públicos – tornaram-se posse do município e até hoje servem de fonte para inúmeras pesquisas sobre a história local. Serão estes documentos, somados a outros adquiridos pelo município de Caxias do Sul por meio de doações espontâneas ou compra de acervos expressivos, que darão o escopo das pesquisas subsequentes.
Todas as obras feitas a posteriori acabariam por citar, direta ou indiretamente, a produção de Adami, primeira a trabalhar com a história de Galópolis, temática da pesquisa em questão. Dentre estas, em suma, seguindo uma linha econômica e política da História, encontram-se as densas pesquisas de doutoramento da professora titular do curso de Sociologia da Universidade de Caxias do Sul, Vania Beatriz Merlotti Herédia, intitulada “Processo de Industrialização da Zona Colonial Italiana” (2017), o compilado com a Legislação de 1847 a 1915 que orientaram a imigração organizado por Luiza H. Iotti, denominado “Imigração & Colonização” (2001) e a vasta produção de Mario Gardelin e Rovílio Costa, com enfoque na “Colônia Caxias: origens” (1993). Outras obras fundamentais são o livro “Caxias do Sul: Evolução Histórica” (1977) de Loraine S. Giron, a dissertação de Roberto R. F. do Nascimento, “A Formação Urbana de Caxias do Sul” (2009) e a de Marlos Ferri, denominada “Tecendo uma História: a Cooperativa Têxtil Galópolis” (2018).
Tais produções ressaltam o papel do Estado – tanto brasileiro quanto italiano – para o desenvolvimento do processo migratório italiano oficial que culminou com a ocupação do território hoje denominado Galópolis. Conforme ressalta Iotti (2001), o Decreto nº. 3.784 de 19 de janeiro de 1867 (p. 297 a 303); a Decisão nº. 214 – Agricultura, Comércio e Obras Públicas – de 30 de junho de 1871 (p. 307); o Decreto nº. 7.570 de 20 de dezembro de 1879 (p. 422); a Decisão nº. 702 – Agricultura, Comércio e Obras Públicas – de 24 de dezembro de 1879 (p. 422); a Decisão nº. 15 – Agricultura, Comércio e Obras Públicas – de 97 de abril de 1880 (p. 423); e o Decreto nº. 9.182 de 12 de abril de 1884 (p. 434), foram fundamentais para a vinda dos primeiros imigrantes italianos para a região nordeste do Rio Grande do Sul, composta por terras devolutas do Estado, e sua consequente ocupação. Entretanto, a ocupação do território devoluto tratava-se apenas de um dos objetivos da imigração oficial, que pode ser vista sob a ótica italiana e brasileira de diferentes formas.
A perspectiva italiana via a imigração como uma saída para resolver uma série de problemas políticos, econômicos e sociais. Segundo Giron (1977, p. 19-20),
Durante as guerras da unificação, e até 1919, a situação do Norte da Itália era bastante difícil. Súditos austríacos permaneciam no território italiano, enquanto italianos permaneciam no Trentino, que ficava sem bandeira e sem nação. [...]. A Itália [também] sofria com a falta de capital. A nascente Revolução Industrial não podia florescer no país sem sua existência. Além disto, o capital se encontrava nas mãos de poucos, que não se dispunham a empregá-lo em novas indústrias [e quando o faziam, remuneravam seus trabalhadores de forma insuficiente]. [...]. À miséria somava-se a displicência das autoridades constituídas e a falta de mobilidade social. O surto demográfico veio agravar a situação, não havia esperanças de melhorias, a esperança era a emigração”.
Ainda segundo Giron (1977, p. 21), no Brasil, a situação do último quartel do século XIX era oposta à Itália. Com a extinção do tráfico de escravos em 1850, o problema da mão-de-obra se fez presente, ainda mais com a escravidão que estava em vias de extinção. Surgiu a necessidade de um trabalhador livre, barato e especializado que além de trabalhar nas terras em desenvolvimento – principalmente na zona da cafeicultura –, poderiam ocupar territórios devolutos do Estado, e “branquear” a população brasileira, que segundo dados de 1800, possuía apenas um terço de sua população branca, o que ia contra as doutrinas higienistas do período. A conjunção destes fatores desencadeou o processo imigratório oficial – que não se restringiu somente a italianos, como também a alemães e açorianos no início do século XIX –, que veio a ocupar também o lugar hoje denominado Galópolis.
A região de Galópolis, propriamente dita, em seus primórdios, no ano de 1876, fazia parte do espaço destinado à colonização de terras devolutas do Estado no nordeste do Rio Grande do Sul. Estas terras, a partir da ótica lançada pela Lei de Terras de 1850, não possuíam proprietário, e sua ocupação restringia-se à povos nativos e estadias temporárias de tropeiros que cruzavam o território no intuito de chegarem a Porto Alegre, sendo consideradas, de tal forma, “inabitadas”, “selvagens” e “improdutivas”.
Com a chegada dos primeiros imigrantes italianos à região, iniciou-se o processo de industrialização, que teve seu berço no “vale profondo” por meio de uma cooperativa têxtil fundada por ex-operários de uma das indústrias de cunho paternalista mais conhecidas do norte italiano, denominada Lanifício Rossi (ou Lanerossi). O processo que culminou com a saída de cerca de 308 tecelões daquela fábrica exemplifica o período conturbado que o país passava na segunda metade do século XIX.
Segundo Herédia (2017, p. 224), já
em 1876 encontram-se registros de famílias já radicadas na localidade, na época chamada de “Desvio de Morro”. Os primeiros colonos italianos que ali se instalaram faziam parte do programa oficial de imigração financiado pelo governo brasileiro, para ocupar e colonizar aquelas terras [devolutas]. Portanto, esses colonos eram proprietários de pequenos lotes, os quais se dedicaram a cultura de subsistência visto que o local era cercado de morros e não é propício à agricultura extensiva e à criação de gado.
A localidade era composta por parte dos lotes coloniais 11, 12 e 13 do Travessão Barata Góes da Quarta Légua, expandindo-se posteriormente por meio dos lotes 70, 71 e 72 do Travessão Santa Rita na Terceira Légua e parte dos lotes da Quinta Légua, os 43, 44, 45 do Travessão Solferino. Era a região mais ao Sul dos então Fundos de Nova Palmira ou Colônia Caxias (atual Caxias do Sul), e, logo, um dos caminhos utilizados para se chegar às outras 14 léguas que compunham a colônia – totalizando 17 léguas – ou à capital do estado.
Mapa atual de Caxias do Sul desenhado sobre a Planta Geral da Colônia Caxias de João Spadari Adami (04 de julho de 1962).
Conforme aponta o recenseamento, em 1890 já existiam cerca de 56 famílias que se estabeleceram nestes lotes caracterizados por uma condição geográfica bastante acidentada e por isso passaram a chamar a região por diversos nomes não-oficiais como Vale del Profondo, Cascata da Quarta Légua, Desvio de Morro e Le Machine – sendo o nome Galópolis elegido anos mais tarde, em 1915, em honra à Hércules Galló, imigrante italiano que é confundido pelo senso comum como fundador da indústria local, fato que não é sustentado pela historiografia do lugar. As características geográficas da região seriam responsáveis por criar uma espécie de imobilidade e distanciamento do resto da Colônia.
Segundo informações do Livro-Tombo da Paróquia de Galópolis (1936, p.1), juntar-se-iam às primeiras famílias do Vale Profundo – advindas do norte da Itália, principalmente do Vêneto – cerca de vinte e oito ex-operários de uma antiga indústria têxtil também do norte do país, na cidade de Schio, província de Vicenza, comumente conhecida como Lanifício Rossi. Conforme é apresentado no site da Associazione Archeologiaindustriale.net,
L’avvio della grande impresa tessile si deve a Francesco Rossi (1782-1845), già procuratore di lane nell’Alto Vicentino. La sua lungimiranza nella direzione dell’opificio fu colta dal figlio Alessandro (1819-1898), che nel 1845 divenne direttore del Lanificio. Quando nel 1873 il Lanificio F. Rossi si trasformò in Società Anonima con capitali italiani e stranieri e sede a Milano, egli rimase comunque alla testa dell’azienda, coinvolgendo i figli Giuseppe, Giovanni, Gaetano e Francesco e, nel 1879, garantendo la continuità della presenza familiare nell’impresa con il sistema delle gerenze.
Embora esta narrativa foque no legado familiar da família Rossi, a sua abertura ao capital estrangeiro para consequente modernização em 1873, culminou com a primeira grande crise que a região viu, chegando a paralisar os seus mais de 12.000 fusos, que correspondiam à mais que a metade da produção de lã da cidade, caracterizada por ser um forte polo laneiro.
Fachada da Fábrica Alta do Lanifício Rossi Fonte: Fachada do prédio da Fábrica Alta do Lanifício Rossi, em Schio. Autor: não identificado. Data: não identificada. Acervo do coletivo Arqueologia Industrial
A organização dos operários perpetuou-se ao longo dos anos de 1890, o que acarretou em repressão direta e indireta. Um exemplo desta última, foi a diminuição de cerca de 20% do salário dos operários – já bastante diminuto – no ano de 1891, fator desencadeador de uma greve operária que reivindicou melhores condições e remunerações aos trabalhadores. Segundo Verona (1997, p. 2), o dia 17 de fevereiro daquele ano seria uma data a ser lembrada para sempre naquela cidade.
Seus 15 mil habitantes depararam-se, já nas primeiras horas matinais, ao soar das sirenes para a entrada das fábricas, com o tumulto de transeuntes, às centenas, subindo a Via Palestro. Descobriram assim, atônitos, que algo insólito estava em curso. A produção de tecidos no maior complexo fabril da cidade, mola mestra da economia industrial local, fora totalmente paralisada. Desde 1973, jamais se vira uma movimentação de operários dessa natureza. Centenas de trabalhadores do setor de tecelagem haviam cruzado os braços, unânimes, em protesto contra o anúncio feito pela direção da empresa de um iminente rebaixamento do preço das horas trabalhadas. A alcunha, que viria a ser aplicada a Schio, de ser uma "cidade vermelha numa província branca", começara aí a tomar consistência.
Embora a manifestação tenha tomado proporções massivas, neste período ainda não havia direitos trabalhistas institucionalizados, e a reação do Conde Rossi, com medo do que a capacidade de organização de seus funcionários poderia ocasionar, foi dar duas opções aos grevistas solteiros: “o gallera o Brasile!” – “prisão ou o Brasil!”. De tal forma, os 308 operários responsáveis pela organização da paralização foram expulsos da Itália, sendo enviados ao Brasil a bordo do navio Adria (ADAMI apud HERÉDIA, 2017, p. 126). Alguns estabeleceram-se em São Paulo, principalmente no que viria a se tornar o bairro do Brás, mas outros – 28 deles – acabaram chegando no profondo vale verde[1].
Os operários foram enviados através da Comissão de Colonização aos galpões da Terceira Légua, onde foram redirecionados à Capela da Maternidade, na Quinta-Légua, entre 1891 e 1892. Compraram (por meio de prestações que deveriam ser quitadas em até 5 anos) seus lotes de terra, que “variavam de 152 metros a 862 metros quadrados” (ADAMI, 1961, p. 22), próximos aos lotes dos outros colonos e suas famílias que já haviam se estabelecido no local. O principal objetivo para colonização dos lotes adquiridos era subsistência, no intuito de “ocupar o território e criar uma agricultura voltada para atender ao mercado interno, produzindo alimentos que a economia da época, baseada em produtos para exportação, não tinha interesse, nem instrumentos para fazê-lo” (NASCIMENTO, 2009, p. 318).
Projeção de um lote colonial. Fonte: RECH, Roberto. Levantamento do Loteamento da Colônia Caxias – Fase colonial: 1875. Caxias do Sul: 1984, p. 94.
Começaram a se dedicar à agricultura de subsistência, mas esta não era propícia para o clima e o relevo que encontraram – bastante semelhante ao de Schio. Por todos os lotes adquiridos pelos primeiros imigrantes, cortava um arroio, o que poderia ser útil para a geração de energia livre. “Em 1894, a ideia de fundar um lanifício semelhante àquele deixado na Itália começou a surgir entre esse grupo de emigrantes [...]” (ADAMI apud HERÉDIA, 2017, p. 127), que em 29 de janeiro de 1898, depois de muitos processos burocráticos com a Intendência dos Fundos de Nova Palmira e o retorno de Giuseppe Berno, imigrante que foi ao país natal buscar teares para trazer à nova terra, efetivou-se, com a criação da cooperativa Società Tevere e Novità, que se tornou a primeira cooperativa têxtil da Região de Colonização Italiana (RCI).
Segundo a carta escrita por Giuseppe Formolo – um dos 28 cooperativados no primeiro lanifício – aos seus pais na Itália em 1897 (HERÉDIA, 2017, p. 124),
[...] Abbiamo mandato in Europa a comprare una macchina e posta qua ci è venuta a costare 28.000 fiorini ed ora l’abbiamo messa in opera ed è distante da me 1 ½ ora, la va ad qua, la casa lo fatta io, cioè sono stato capo d’uomini soltanto a segnare ed i altri a mettere a posto, la casa é de 40m, di larghezza e 40 di lunghezza con 38 finestre di 120 per 160 cm.rna si aveste da vedere adesso il concorso della popolazione per vedere questa macchina é un sproposito, fino ieri l’altro sono pure statto segretario di questa canceleria, ed adesso mi hanno dimesso da questo impiedo e mi hanno meso capo della comissione la sittuazione si chiama (Novità) e la società si chiama Tevere cioè il nome del fiume che pasa per Roma, entro 2 mesi spero che si dara principio al lavoro di tessitura. [...].
Lanifício Società Tevere e Novitá em 1903. Primeira foto do Lanifício Società Tevere e Novitá. Na moldura frontal lê-se "Ao prezado amigo Orestes Manfro que vendo nesta photographia, [...] da fábrica / de Galópolis, [...] / em 23.5.1925. Alceu Barbedo". Lê-se no verso: "Exterior da Fábrica de Tecidos / em Caxias situada na 5ª Légua / e distante da villa duas legua / e meia / 10-3-903".” Autor desconhecido. Data: 10 de março de 1903. Fonte: Arquivo Histórico Municipal João Spadari Adami.
Embora o lanifício chamasse a atenção dos moradores locais e, em um primeiro momento, por se tratar da primeira indústria têxtil da localidade, tenha se saído relativamente bem nas vendas, não tardou a falir na primeira metade da década de 1910. Neste período, o Rio Grande do Sul começava a adquirir certa importância no cenário industrial nacional pela sua produção de matérias primas que estimulava principalmente a tecelagem – de tal forma, muitos lanifícios (que utilizavam a lã da ovelha, criada extensivamente nas regiões mais planas do Estado) começaram a se desenvolver na Região. Devido à grande oferta e pouca procura, muitos desses empreendimentos acabaram falindo – como é o caso da Società Tevere, dos primeiros operários que ocuparam o Vale Profondo. Com problemas administrativos, baixo investimento de capital (feito majoritariamente pelos próprios membros da cooperativa) e o aumento da oferta de produtos de outras regiões para além da RCI, com o desenvolvimento do comércio, a indústria dos operários de Schio faliu.
É neste cenário de crise da indústria precursora da tecelagem na região que entra em cena a figura de Hércules Galló, hoje visto como empreendedor e patriarca da localidade, inclusive, dando nome a ela (Galópolis = cidade de Galló). Filho de um industrial da área têxtil na cidade de Biela, localizada em Piemonte na Itália, veio para o Brasil em 1899 – mesmo ano que é fundada a cooperativa Tevere, não sendo, de tal forma, o único responsável pelo desenvolvimento econômico da região, como comumente é associado pela ideologia positivista – já com poder aquisitivo advindo da venda do parque fabril do pai na cidade natal (HERÉDIA, 2003, p. 40). Possuía uma especialização, sendo então um mestre tecelão, diferente da grande maioria dos pequenos proprietários rurais e artesãos que viam-se obrigados a migrar para o Brasil.
Antes da chegada no “Desvio de Morro”, Galló e sua família (esposa e dois filhos; o terceiro nasceria em Galópolis) passaram um período em outros lanifícios no Rio de Janeiro e em Porto Alegre – respectivamente, o Cotonifício Sociedade Botafogo e a Fiação de Tecidos Portoalegrense (FIATECI) –, onde expandiu ainda mais seu capital individual. Em ambos os empreendimentos, Galló desempenhou o papel de químico tintureiro, herdado do trabalho com o pai, o que traria mais possibilidades de emprego para onde quer que fosse.
Trabalhando em Porto Alegre, ele toma conhecimento da cooperativa que estava falindo na serra gaúcha por meio de um informe no jornal “O Cosmopolita” do dia 22 de janeiro de 1903, e decide conhecer a região, estabelecendo-se na Quarta-Légua a partir de então. Adquire parte do empreendimento localizado na légua seguinte em 1904 e o transfere para um lote maior, cortado pelo Arroio Pinhal e que tinha ao fundo a Cascata Véu de Noiva, construindo logo em seguida sua primeira residência, bem em frente ao novo espaço do lanifício no vale verde; sua segunda residência passa a ser edificada em 1908, ano que compra a outra metade da fiação que ainda estava nas mãos da cooperativa, tornando-se único proprietário e investidor do negócio. As duas casas, atualmente, são tombadas como patrimônio histórico desde 2010 e foram restauradas, passando a abrigar, em 2012, o Instituto Hércules Galló, que serve como núcleo de implantação do projeto de musealização do território de Galópolis (BUENO, 2012, p. 75).
Fachada das residências da família Galló. Vista da primeira residência da família Galló (à direita), construída em 1904, e da segunda (à esquerda), edificada em 1908 e tornada núcleo do Museu de Território de Galópolis a partir do ano de 2015. Autoria: não identificada. Data: não identificada. Fonte: Acervo Instituto Hércules Galló.
Galló passa a desenvolver o negócio adquirido e implantando uma série de inovações tecnológicas que ampliaram a atuação da então Companhia dos Tecidos de Lã (nomenclatura dada após sua compra definitiva) no cenário comercial da RCI. Dentre as mudanças trazidas por Galló, a principal foi à implantação do primeiro alternador de energia elétrica junto à queda da cascata próxima, o que possibilitou um exponencial aumento na produção e inúmeras melhorias para a vida no entorno da fábrica, que recebeu energia elétrica antes mesmo do que o centro da Colônia Caxias. Ainda segundo Herédia (2003, p. 47),
a atividade comercial de Hércules Galló levou-o a conhecer a Casa Comercial Chaves & Almeida, sendo que anos mais tarde [em 1912] o grupo [...] tornou-se sócio do empreendimento localizado no Vale del Profondo [...].
A sociedade com os Chaves & Almeida representaria o auge da atividade comercial da empresa, que passa a se chamar Chaves & Irmãos e se populariza à nível estadual e nacional. É neste período, em 1912, que as principais “ações afirmativas” são tomadas em relação ao operariado: no mesmo ano é iniciada a construção da vila operária que abrigaria e manteria os operários próximos do emprego – parafraseando Lopes et al (1987, p. 15), o objetivo principal de sua existência é a imobilização da mão de obra, o que significaria menos custo com deslocamento e obrigaria os operários a permaneceram na empresa até quitarem suas dívidas pela ocupação de casas que não os pertenciam –, com a criação, inclusive, de elementos que iriam para além da moradia.
Vila operária de Galópolis na década de 1910. Vista da área central da vila operária, composta por um grande campo de futebol para o divertimento dos operários, ampliando sua capacidade produtiva, antes da construção da praça e da Igreja de Nossa Senhora do Rosário de Pompéia, em 1947. Autoria: não identificada. Data: década de 1910. Fonte: Associação de Moradores do Bairro Galópolis.
Outros espaços criados para garantir a sociabilidade e a divisão de classes e poderes na vila, para além da própria vila operária, são o Círculo de Leitura e o Cinema Operário (ambos fundados em 1929), a Cooperativa de Consumo São Pedro Ltda.(1936) – que vendia produtos não fornecidos na localidade aos operários e o Sindicato dos Trabalhadores nas Indústrias de Fiação e Tecelagem do Distrito de Galópolis – desfiliado ao do centro da então cidade de Caxias (fundado em 1939). Posteriormente, alguns destes elementos foram fundidos e acabaram constituindo o Círculo Operários Imaesl Chaves Barcellos, conforme evidencia-se em seguida.
Cine-Operário na década de 1960. Fachada do cinema pós-1965, quando vira propriedade da Mitra Diocesana sob a tutela do padre Angelo Mugnol, que manteve Victório Diligenti, antigo proprietário, como gerente até 1967. Originalmente construído em 1929, o prédio de madeira que abrigava as primeiras projeções principalmente de filmes de “bang bang”, recebe o revestimento de alvenaria que mantêm-se até hoje. Autoria: Maria da Graça Soares. Data: Segunda metade da década de 1960. Fonte: Jornal Pioneiro.
Alguns elementos “oficiais” também foram criados para garantir a imobilidade e tecnicidade da mão-de-obra do Lanifício, como a Escola Ismael Chaves Barcellos – que garantia a possibilidade de “leggere, scrivere e calcolare per essere alcuno nella vitta” (LUCHESE, 2007, p. 12) –, onde, sob o comando das irmãs do Sagrado Coração de Maria e do pároco local, que vivia próximo à Igreja Nossa Senhora do Rosário de Pompéia – segunda igreja da região, construída em 1947 para ostentar a “grandeza” de Galópolis –, organizavam-se apresentações da banda marcial João Laner Spinatto, que apresentava-se em festejos organizados pelo próprio Lanifício no local que hoje compõe a Praça Duque de Caxias – mas que originalmente tinha a função também de campo de futebol, outro fator unificante do operariado local.
(...) a preocupação com a vila por parte de quem a gerenciava manifestava-se em todas as esferas: da questão educativa, religiosa, sanitária, social à recreativa, justificada sempre com o fim de suprir as necessidades básicas da comunidade operária, como se pode observar nos tipos de atividades desenvolvidas pela fábrica. (HERÉDIA, 2017, p. 41).
SindiGal em julho de 1951. Comunidade do bairro e alunos do Grupo Escolar Paraná prestigiando a inauguração da nova sede própria do Sindicato dos Trabalhadores nas Indústrias de Fiação e Tecelagem de Galópolis, inaugurada em 1951 na então Av. Presidente Vargas, 901. Autoria: Studio Geremia. data: julho de 1951. Fonte: Sindicato dos Trabalhadores das Indústrias de Fiação e Tecelagem de Galópolis (SindiGal).
Festejo eucarístico no Colégio Particular Chaves Irmãos em 1937. Padre João Schiavo, com as crianças da primeira comunhão, ao lado do prédio do Colégio Particular Chaves Irmãos. À esquerda, João Laner Spinato, gerente do Lanifício São Pedro. Autoria: Sisto Muner. Data: 1937. Fonte: Foto Muner.
Igreja Nossa Senhora do Rosário de Pompéia na década de 1940. Construtores da nova Igreja Matriz, também operários do Lanifício São Pedro, nos andaimes durante os últimos acabamentos na edificação. Autoria: Sisto Muner. Data: Segunda metade da década de 1940. Fonte: Foto Muner.
Festa de Nossa Senhora do Rosário de Pompéia no Parque Ismael Chaves Barcellos na década de 1920. Festejo em honra à Nossa Senhora do Rosário de Pompéia no centro da Vila Operária, onde funcionava o Parque Ismael Chaves Barcellos e foram dispostos brinquedos e uma fonte devido à ocasião. Autoria: não identificada. Data: Década de 1920. Fonte: Associação dos Moradores de Galópolis.
Para além dos espaços “oficiais” criados pelo Lanifício, criaram-se outros, espontâneos à criação da Vila Operária, como é o caso da Casa Stragliotto e do Armazém Basso, destinados à venda de “secos e molhados”, proporcionando a movimentação do capital dos operários para além do que era produzido pela indústria local, o que também passou a moldar o padrão de consumo e a estética dos moradores.
A utilização e ressignificação destas edificações criadas a partir da dinâmica industrial e paternalista que perpassou os processos culturais da região continuaram a ocorrer de diferentes formas a partir de 1921, quando Hércules Galló falece – segundo os laudos médicos oficiais por apendicite –, pois o lanifício continuou exercendo seu papel de organizador da vida no seu entorno. Todavia, a partir de 1928, a família Galló, que ainda possuía ações na empresa, acaba vendendo-as diante da nova perspectiva que esta assumiu: tornou-se Sociedade Anônima Companhia Lanifício São Pedro – com as chaves dos portões do céu como símbolo – e aumentou ainda mais sua produtividade com a implantação de novas tecnologias na produção.
A tradição paternalista da indústria têxtil local perdurou até 1979, ano que o Lanifício São Pedro, sob a administração dos Chaves & Almeida, acaba falindo e é criado o Lanifício Sehbe S.A., sob a administração do Grupo Alfred, representado, por sua vez, pela Fundação Kalil Sehbe S.A. Pensando na paisagem industrial do bairro, a maior transformação ali ocorrida durante esta gestão foi a ocupação do prédio do Círculo Operário pela administração fabril. A edificação abrigou a sede administrativa do Lanifício Sehbe até 1999, e mesmo após, resguardou a sua documentação.
Embora estes continuassem com os clientes que mantiveram o Lanifício São Pedro aberto por tantos anos, na metade da década de 1990, passaram a enfrentar dificuldades. Conforme destaca Alfredo Sehbe na entrevista ao Jornal Pioneiro (1999, p.11 apud HERÉDIA) eram muitas as causas das dificuldades financeiras e fiscais, dentre elas – além da já citada diversificação da matéria-prima –, as políticas neoliberais que abriram as portas para a importações e congelou o câmbio, o que acarretou, no contexto de globalização, na falência de cerca de 50% dos lanifícios brasileiros, perda de clientes e na impossibilidade de fornecimentos institucionais devido à dívida interna do governo, sem falar dos invernos de 1997 e 1998 que prejudicaram a alta safra devido ao pouco frio.
Na percepção dos trabalhadores, havia a crença, por se tratar de um lanifício onde muitos nasceram e viveram a vida toda envolvidos em seu desenvolvimento, que as dificuldades seriam superadas por meio do trabalho. Na percepção dos proprietários, a família Sehbe, que nessa época era uma das famílias mais destacadas da sociedade econômica caxiense, acreditava que os problemas econômicos seriam resolvidos e que o Lanifício continuaria em funcionamento por mais difícil que essa situação ficasse ao longo dos meses de 1998. Assim arrastou-se essa situação até o início de 1999. (FERRI, 2018, p. 90).
Com salários atrasados há mais de seis meses e pagamentos somente por meio de vales para troca na Cooperativa de Consumo e nos armazéns da região, os operários não viram mais perspectiva de continuar nesta situação dentro da administração do Grupo Alfred, e decidem organizar uma greve geral, parando toda a produção de trinta e um de março de 1999 até oito de junho do mesmo ano, conforme ata do sindicato da primeira sessão do ano de 2000.
O Grupo Alfred ofereceu algumas alternativas para um possível desfecho do conflito, que foram analisadas pelo operariado local. Após muitas negociações que se deram por meio do Sindicato dos Trabalhadores nas Indústrias de Fiação e Tecelagem de Galópolis (SindiGal) até o dia sete de junho de 1999, foi criada a Cooperativa Têxtil de Galópolis (COOTEGAL), com a participação de 32 associados no sistema de cooperativa de trabalho, que quitou as dívidas trabalhistas e mantêm-se ativa até hoje, dando continuidade à tradição do operariado étnico local.
“A Cooperativa, na origem denominada ‘Società Tevere e Novitá’, passou por várias estruturas administrativas, começando como cooperativa, depois como indústria da lã, sociedade anônima, até novamente retornar a sua estrutura inicial de cooperativa.” (FERRI, 2018, p. 15). De tal forma, pode-se afirmar que a história cíclica se faz presente na história de Galópolis, que teve sua formação e desenvolvimento dados por meio das relações de trabalho e identidade com a indústria local, oriunda do processo imigratório oficial italiano.